Um conto sobre o despertar

Você continua seguindo cada dia, mas parece que você não está lá. Não tem ninguém no comando. Está tudo adormecido. Muita produção, excelente desempenho, mas falta sentido. Falta tempo para comemorar. Falta tempo para fazer uma ligação. Falta tempo para uma conversa com “seus velhos”! O motor precisa seguir funcionando. Você precisa sustentar esse lugar, mas ele está esgarçando. Não importa! Você aguenta mais um pouco. Abre espaço na agenda e segue. A sensação de cansaço de si aumenta e você começa a perceber que não dá mais conta de levar a vida dessa maneira. Daí você busca algo para te nutrir internamente, mas você só aprendeu a consumir. Não há nutrição no consumo, há desejo de mais consumo. De consumo a consumo, sentindo inveja, raiva, desejando ser outra pessoa, você cansa. O “cabeção” só sabe exigir, pensar, querer, criticar! Uma merda! Olhando para o teto, tentando se convencer com diálogos internos de que essa repetição vai levar a grandes realizações. Mas a mente produz mais e mais conteúdo. Você se perde nos temas. Agora está preocupado com seu cachorro. Ele está doente e você mal teve tempo de ouvir o que o veterinário falou. Só ouviu a parte que ele deve ser sacrificado. Amanhã segue a vida sem ele. Se culpa, porque não tinha tempo de brincar quando ele vinha com “gracinhas idiotas” para cima de você. Você é uma pessoa importante, não tem tempo para infantilidades. Seu laptop é muito valioso para cair algum pelo. Além do mais, preciso me concentrar em ter o melhor desempenho. Mas a possibilidade de sacrificar a vida do cachorro, lhe conduziu a uma pausa e essa pausa forçada conduziu sua mente a reflexões. Mesmo sem tempo para crises existenciais, você pensou muitas coisas. “Quando foi que me perdi de mim? ” Revisitou a infância, sonhos, situações e encontros. A cabeça no travesseiro e os olhos no teto seguiram até o outro dia. Levantou cansada, torpe! Olhou o feixe de sol na janela que aqueceu seu rosto adormecido pela noite insone. Insight! O sol sempre volta, sem cessar e sem cansar. Ele é simples. Chega, passa o dia iluminando, ora pouco, ora muito. Seja como for, ele não tem grandes expectativas. Respira profundamente naquela sensação, como há tempos não respirava. Sente uma angústia no peito. O coração dispara! Mas agora, não é de preocupação porque precisa dar conta de mais um trabalho. O coração disparou porque se sentiu perdida. Sentiu que estava em um mar de angústia por não saber mais o que fazer. Respirou mais algumas vezes e se sentiu sem correntes por alguns instantes. Fechou os olhos, sorriu! Permaneceu sentindo o sol e se sentiu livre. Sentiu que despertou para algo. Despertou para a vida que nutre, despertou para simplicidade de poucos sapatos, poucos aplausos, poucos amigos. Se sentiu ótima. Reorientou sua atenção para o essencial. O coração novamente acelerado! Sentiu o mundo de possibilidades, ao mesmo tempo livre e com responsabilidades de novas escolhas. Lembrou que gostava de ler e dançar. Como uma criança, se sentiu com um mundo inteiro para conquistar. Não se julgou nesse momento! O sabor voltou a sua boca. O seu corpo tinha energia pulsante e seus olhos, não aparentavam a noite insone. Abertos! Não, esbugalhados! Porque se deu conta que só tinha uma existência e queria seguir sem pressa e com honra em sua trajetória, sem dar tanta atenção a comparações, a produções, a resoluções do que não pode controlar. Seguiu os dias buscando estar consciente e com a autocrítica sob medida, para se maltratar menos na vida e entendeu que podia seguir refletindo isso com as pessoas, porque resgatou seu olhar infantil de se sentir conectada com o mundo todo, mesmo percebendo a existência da maldade e da indiferença. Seguiu sustentando a consciência de que a cada abrir de olhos e cada respiração, nasce uma nova oportunidade de viver a vida e reorientar a existência. Não teve mais medo de se perder, porque se reconectou a si mesma e passou a nutrir seu espaço interno com dignidade. 

 

Maristela Candida de Freitas

Psicóloga Clínica em TCC CRP 05/49323

Mestre em Saúde Mental (IPUB/UFRJ)

Instrutora de Mindfulness (MBCT) (UNIFESP/OXFORD)

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Maristela Candida

Psicóloga clínica (CRP-RJ) 05/49323, especializada em Terapia Cognitivo-comportamental e Mestranda em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria (IPUB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ). Experiência em atendimentos clínicos na abordagem em Terapia Cognitivo-comportamental (TCC). Professora /Supervisora de TCC do Serviço de Psicologia Aplicada do Centro Universitário Augusto Motta. Membro da Associação de Terapias Cognitivas do Estado do Rio de Janeiro (ATC-RIO) e membro da Comissão de Docentes (ATC-RIO).

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